Que coisa curiosa. Na mesma noite em que aprovou um projeto que aperta o cerco a quem deve ao Estado, o Senado autorizou o Estado a dar um calote em seus credores.
Um código para punir o malandro e premiar o bom pagador
A proposta que dificulta a vida do devedor de impostos, o projeto de lei complementar (PLP) 125/2022, ganhou o sugestivo nome de Código de Defesa do Contribuinte.
Construído a partir de sugestões de uma comissão de juristas, o texto busca equilibrar a proteção aos direitos do contribuinte com o combate à sonegação e ao dito devedor contumaz.
De um lado, privilegia aquele que cumpre as obrigações, historicamente tratado como otário. O bom pagador poderá, por exemplo, ganhar desconto de até 3% no pagamento da CSLL e terá preferência em licitações e prioridade em demandas ao Fisco. A proposta também prevê mecanismos para ajudar quem passa sufoco mas quer pagar o que deve.
De outro lado, o projeto pune quem deve de propósito – o malandro que faz da inadimplência reiterada um modelo de negócio e uma vantagem competitiva. Este será impedido de usufruir de benefícios fiscais, participar de licitações e receber autorizações, licenças e concessões da administração pública. Poderá até perder o CNPJ.
(Evidente que o mau pagador pode dispor de bons advogados e escapar de tudo isso. É do jogo.)
O PLP 125/2022 passou por unanimidade em votação nesta terça (2), com apoio de 71 senadores, e agora será avaliado pela Câmara dos Deputados.
Ocorre que, apenas uma hora antes e também por placar elástico, o mesmo Senado aprovou proposta que trata de forma bem distinta outro devedor contumaz – o governo.
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Por 71 votos a dois (confira os votantes aqui), os senadores deram aval definitivo à proposta de emenda à Constituição (PEC) 66/2023, que afrouxa as regras para o pagamento de precatórios – dívidas do setor público, com empresas e cidadãos, cujo pagamento é determinado pela Justiça após trânsito em todas as instâncias.
Na regra original, o precatório que o Judiciário emite em um ano precisa ser pago pelo governo no ano seguinte. Já não é assim há muito tempo para boa parte dos estados e municípios, favorecidos por sucessivos programas de parcelamento.
A PEC 66 cria o mais novo deles, só que mais benevolente que os anteriores. Ela fixa um teto anual de pagamento de precatórios, equivalente a uma fração das receitas do governo, e não determina prazo para a quitação – o atual regime especial determinava que ela ocorresse até 2029.
Na maioria dos casos, estados e municípios serão liberados a gastar menos com precatórios do que hoje. Se o seu prefeito ou governador vier de repente com uma grande bondade, pode ser graças ao dinheiro poupado às custas dos credores.
Como em muitas situações o fluxo de pagamento definido pela PEC 66 não cobre nem os valores dos novos precatórios inscritos a cada ano, muito menos o estoque, a dívida vai se agigantar. Quem está há anos ou décadas na fila vai demorar ainda mais a receber.
Em paralelo, estados e municípios que não recolheram as devidas contribuições à Previdência Social poderão renegociar também essas dívidas.
O governo federal, por sua vez, poderá excluir o pagamento de precatórios do limite de gastos do arcabouço fiscal. Os valores também não serão contabilizados para a meta de resultado primário de 2026, e a reincorporação será gradual: em 2027, só 10% da despesa com precatórios valerá para a meta; em 2028, 20%; e assim por diante. Tudo isso abrirá “espaço fiscal” para outros gastos.
Há ainda mais uma vantagem, esta válida para todos os governos (estaduais, municipais e federal): a mudança no índice de correção dos precatórios. Em vez da Selic, que está em 15% ao ano, eles serão atualizados por IPCA mais 2%, o que hoje dá pouco menos de 7,5%. O contribuinte que deve ao setor público, enquanto isso, continuará tendo seu débito corrigido pela Selic.
Já aprovada em dois turnos por Câmara e Senado, a PEC será promulgada pelo Congresso na próxima terça (9), passando a valer imediatamente. Ao que tudo indica, porém, ela será questionada mais adiante no Supremo Tribunal Federal (STF).
Em julgamentos anteriores, o STF considerou inconstitucionais artimanhas reeditadas na PEC 66. Entre elas: a falta de prazo para a quitação dos precatórios; a limitação do pagamento a um percentual da receita; a fixação de teto ou subteto de pagamento anual; e a falta de isonomia entre Fazenda e contribuinte, por causa da diferença nos juros que o Estado paga e os que ele cobra.
Reside no Supremo, portanto, a esperança de quem tem dinheiro a receber do governo.