O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aposta na retomada de grandes projetos hidrelétricos para ampliar a geração de energia no Brasil. A inspiração vem de uma ideia lançada nos governos militares e colocada em prática com a construção da usina de Itaipu, uma das maiores do mundo, entre 1975 e 1982. A iniciativa da vez é a construção de uma usina binacional na fronteira com a Bolívia, aproveitando o potencial do Rio Madeira.
O plano, no entanto, nasce sob o ceticismo de especialistas e reacende o temor de obras com custo elevado, baixa transparência e poucas vantagens econômicas para o Brasil. A proposta foi ressaltada pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, que, no mês passado, declarou ter falado com o presidente sobre a importância de avançar com “uma nova binacional a caminho, repetindo o sucesso de Itaipu”.
Contudo, para especialistas como o engenheiro e economista Erik Duarte Rego, a proposta tem um forte caráter político e não apresenta vantagens técnicas ou econômicas para o lado brasileiro.
Custos elevados e desafios logísticos marcariam projeto
Um dos principais entraves é o custo. Além de ser uma obra gigantesca, a construção de uma hidrelétrica binacional na Amazônia demandaria ainda mais recursos devido às dificuldades logísticas da região, como transporte, acesso limitado e longos períodos de chuvas. As exigências ambientais também gerariam impactos econômicos adicionais, elevando o valor final da construção.
As linhas de transmissão, necessárias para escoar a energia, são um desafio à parte. Durante a construção das usinas de Santo Antônio e Jirau, ambas no Rio Madeira, o custo das linhas para levar a energia até o Centro-Sul do país foi próximo ao da própria construção de uma das usinas. Assim, é preciso avaliar se as linhas já existentes comportam a nova transmissão ou se será necessário construir novas estruturas de altíssimo custo.
A própria geração de energia pode ficar abaixo do esperado. Com a evolução das preocupações ambientais, hoje se opta pelo modelo “fio d’água”, com menor impacto por não exigir grandes reservatórios como o de Itaipu. A desvantagem é que essas usinas não armazenam água, e a geração fica condicionada ao regime de chuvas, podendo ser baixa ou nula durante a seca — o que eleva ainda mais o custo da energia gerada.
Viabilidade econômica é questionada por especialistas
Diante desses custos, a viabilidade econômica do projeto é questionada. Segundo Erik Rego, a resposta é negativa. Atualmente, uma composição de fontes alternativas — como eólica, solar e biomassa — pode atingir a mesma capacidade de geração com custos de construção e implementação bem mais baixos.
No longo prazo, o investimento não se justificaria, já que há alternativas mais baratas capazes de oferecer energia a um preço menor. “Para fazer uma hidrelétrica hoje, no Brasil, tem que ter subsídio e interesse do governo. Só se faz se o governo quiser e liberar”, comentou o especialista, reforçando o caráter político da proposta.
Histórico com Bolívia e risco político entram na equação
Além das incertezas econômicas, o ceticismo do mercado se ampara no complexo histórico de cooperação energética com a Bolívia, que traz à tona os riscos políticos e jurídicos do novo empreendimento.
Caso seja levada adiante, a hidrelétrica não será a primeira iniciativa conjunta entre os dois países. A história do Gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol), construído nos anos 1990, é um precedente que não pode ser ignorado.
As obras do gasoduto começaram em 1997 e o primeiro trecho entrou em operação em 1999. Em 2006, já com o Gasbol em plena atividade, o então presidente Evo Morales nacionalizou o setor de petróleo e gás da Bolívia e ordenou a ocupação de refinarias da Petrobras.
Na época, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva classificou a medida como um “ato soberano” boliviano. No ano seguinte, um novo acordo elevou em cerca de US$ 100 milhões anuais o custo do gás para o Brasil, e a Bolívia aceitou indenizar a Petrobras em US$ 112 milhões pela “compra” das refinarias.
Divisão de custos e responsabilidades gera dúvidas
As dúvidas sobre o novo projeto binacional giram justamente em torno do financiamento e da divisão de responsabilidades. Pela posição da hidrelétrica, Erik Rego afirma que o reservatório ficaria integralmente em território boliviano, cabendo ao Brasil fornecer a expertise técnica e os recursos para financiar o projeto. Na visão do especialista, por ser um país mais pobre, a Bolívia não teria como contribuir com aportes significativos, e o ônus recairia sobre os cofres públicos brasileiros.
Já a advogada Isabela Ramagem, especialista em energia e sócia do Caputo, Bastos e Serra Advogados, afirma que, mesmo com participação financeira e técnica mais modesta, a Bolívia poderia contribuir.
Segundo ela, o país tem um parque hidrelétrico voltado ao consumo interno, com grandes usinas como San José 1 e San José 2, o que garantiria sua participação técnica no projeto. Além disso, a Bolívia conta com apoio financeiro do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) para viabilizar novos empreendimentos, o que poderia garantir aportes ao projeto binacional.
A especialista, a continuidade da cooperação entre os dois países é estratégica sob a ótica comercial, especialmente diante da expansão das energias renováveis e da possibilidade de uma nova hidrelétrica servir como garantidora da segurança energética. A questão que fica para o mercado e para o contribuinte brasileiro é se os potenciais benefícios estratégicos superam os elevados riscos econômicos e o instável precedente político.