A aprovação da bagagem grátis pela Câmara na terça-feira (28) pode encarecer as viagens aéreas para todos os passageiros. Especialistas alertam que as companhias aéreas tendem a repassar o custo da franquia obrigatória para o preço das passagens, penalizando inclusive quem não despacha mala.
“Uma coisa sempre vai compensar outra. Se uma mala tem que ser de graça, aumenta-se o preço da segunda mala”, afirma Gustavo Kloh, professor de Direito da Escola de Direito do Rio de Janeiro (FGV Direito Rio) e sócio do escritório Navarro, Botelho, Nahon e Kloh Advogados.
A Câmara dos Deputados aprovou por 361 votos a 77 um projeto de lei que torna obrigatória a franquia gratuita de bagagem despachada de até 23 quilos nas viagens aéreas. O texto, que segue agora para o Senado, também proíbe a cobrança pela escolha de assento padrão e pelo despacho de bagagem de mão.
A votação do projeto de lei faz parte de um esforço do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos), de buscar a aprovação de pautas mais populares depois dos impactos negativos da aprovação da PEC da Blindagem pelos deputados.
Desde 2017, promessa de redução de preços não se concretizou
A mobilização na Câmara dos Deputados parte da percepção de que, desde 2017, o mercado não cumpriu a promessa de reduzir o preço das passagens aéreas. Naquele ano, quando a cobrança de bagagem despachada de 23 kg foi liberada, as companhias prometeram queda nas tarifas.
A realidade mostrou o contrário. Segundo a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), entre janeiro de 2017 e setembro de 2025, houve um aumento real (acima da inflação) de 37,7% no preço das passagens. Nesse período, o querosene de aviação (QAV), um dos principais custos das empresas aéreas, subiu 44,6% acima da inflação.
Embora o aumento do combustível justifique parte da alta nas tarifas, a promessa de redução não se concretizou. Segundo o deputado Alex Manente (Cidadania-SP), autor do projeto que reinstaura a gratuidade, as companhias faturaram R$ 5 bilhões com a cobrança de bagagem despachada entre 2017 e 2024. Esse ganho adicional, no entanto, não resultou na redução prometida das tarifas.
“Se o objetivo fosse realmente baratear as passagens, o foco deveria ser a redução do imposto sobre o combustível”, diz a deputada Adriana Ventura (Novo-SP).
Aéreas temem retrocesso e alertam para alta de preços com bagagem grátis
A Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) classifica a decisão como “retrocesso” que compromete a competitividade do setor. Segundo a entidade, a obrigatoriedade da franquia de bagagem despachada elevará os custos operacionais das companhias, que serão repassados aos consumidores na forma de passagens mais caras.
“A imposição de regras rígidas sobre a precificação de serviços aéreos limita a capacidade das empresas de oferecer tarifas diferenciadas e competitivas, prejudicando tanto o setor quanto os passageiros”, afirma a associação em nota.
A entidade argumenta que o modelo atual, baseado na liberdade tarifária, permite que as companhias ajustem preços conforme a demanda e os custos operacionais. A obrigatoriedade da franquia de bagagem, segundo a Abear, engessaria esse modelo e reduziria a flexibilidade das empresas.
O setor aéreo defende que o modelo de segmentação tarifária — no qual o passageiro escolhe o que deseja pagar — amplia o acesso ao transporte aéreo. Quem viaja sem bagagem despachada paga menos; quem precisa despachar mala, paga mais.
Esse modelo, segundo as empresas, permite que consumidores de baixa renda tenham acesso a passagens mais baratas. Se todos os passageiros forem obrigados a pagar pela bagagem despachada, mesmo aqueles que não a utilizam, o preço da passagem subirá para todos.
Desde que foi instituída a possibilidade de cobrar pela bagagem despachada, o total de passageiros que pagaram o equivalente a R$ 500 em valores atualizados pela tarifa caiu de 63,8%, nos oito primeiros meses de 2017, para 52,6%, em igual período deste ano, de acordo com a Anac.
Especialistas preveem “ciclo de compensações” com bagagem grátis
Segundo Gustavo Kloh, as empresas vão buscar compensar a perda de receita caso o projeto seja aprovado pelo Senado e sancionado. Uma eventual aprovação pelo Senado, com sanção presidencial, tende a gerar um ciclo de compensações: as companhias podem repassar o custo para outros serviços, como remarcações, bagagens adicionais ou até mesmo elevar o preço-base das passagens aéreas.
Em um mercado no qual os preços das passagens podem flutuar drasticamente — custando R$ 1 mil pela manhã e R$ 3 mil à noite —, a cobrança de bagagem pode não ser o principal problema enfrentado pelo consumidor.
Associações alertam para risco de isolamento e perda de competitividade
A Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata) e a Associação Latino-Americana e do Caribe de Transporte Aéreo (Alta) manifestaram preocupação com o projeto. Em nota conjunta, as entidades afirmam que a medida representa um retrocesso em relação às práticas globais de aviação e pode prejudicar a competitividade do Brasil no mercado internacional.
As entidades alertam que a introdução de obrigações sem diretrizes claras aumenta a incerteza regulatória, um desafio para a aviação no Brasil. Mudanças frequentes e custosas desestimulam investimentos e afastam operadores internacionais.
Peter Cerdá, vice-presidente regional da Iata para as Américas e CEO da Alta, afirma que o projeto faz o Brasil retroceder em um momento em que a aviação deveria impulsionar o crescimento econômico e a integração regional.
“Ao reintroduzir regras desatualizadas e uniformes sobre bagagem e assentos, a proposta corre o risco de limitar a concorrência e o acesso a tarifas acessíveis e, em última análise, prejudicar os próprios consumidores que pretende proteger”, ressalta.
Segundo ele, a medida é contraditória. “É como ir ao cinema e ser forçado a pagar pela pipoca como parte do seu ingresso.”
Bagagem grátis pode levar a risco de isolamento de muitas regiões
Cerdá afirma ainda que a medida compromete a viabilidade de muitas rotas e companhias aéreas, especialmente aquelas que servem cidades menores e destinos regionais.
“Em vez de promover o bem-estar do consumidor, corre-se o risco de isolar comunidades e reduzir a conectividade essencial para o desenvolvimento do Brasil. A América Latina precisa de estabilidade regulatória e competitividade para crescer, e medidas como esta apenas adicionam custos, reduzem a eficiência e desencorajam novas conectividades”, diz.
As duas associações internacionais apontam que, se promulgada, a lei aplicará restrições rígidas de preço e operação, tanto para voos domésticos quanto para voos internacionais que tenham o Brasil como origem e destino. Isso compromete a eficiência e a flexibilidade essenciais para um sistema de transporte aéreo sustentável.
O texto aprovado também pode violar as disposições de liberdade tarifária em acordos bilaterais de serviços aéreos, colocando o Brasil em não conformidade com seus compromissos internacionais. Como o maior mercado de aviação da América Latina, os efeitos desta legislação podem se estender para além das fronteiras brasileiras, enfraquecendo a atratividade do país como centro de conexões regionais.
Liberdade tarifária: benefício ao consumidor ou estratégia de lucro?
Esse ciclo de compensações expõe o paradoxo central do debate: até que ponto a liberdade tarifária beneficia o consumidor? A resposta divide parlamentares e empresas aéreas.
Para os defensores da bagagem grátis, como os deputados, a cobrança representa abuso. Para as companhias, o modelo atual permite oferecer tarifas mais acessíveis a quem não precisa despachar bagagem.
Essa lógica encontra resistência entre os parlamentares. Para eles, o modelo de segmentação tarifária foi usado pelas companhias para aumentar a receita, e não para baratear as passagens aéreas.
Senado terá palavra final sobre futuro da cobrança
O projeto aprovado pela Câmara coloca o Senado diante de um dilema: atender ao apelo popular pela bagagem grátis ou preservar a liberdade tarifária que, segundo o setor aéreo, democratiza o acesso ao transporte aéreo.
A decisão dos senadores definirá não apenas o futuro da cobrança de bagagem despachada, mas também os limites da intervenção estatal em um mercado historicamente marcado por crises e concentração.











