sexta-feira , 19 setembro 2025
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Rombo recorde expõe crise histórica dos Correios

O prejuízo sem precedentes de R$ 4,4 bilhões registrado pelos Correios no primeiro semestre de 2025 — já acima do recorde negativo de todo o ano anterior, de R$ 2,6 bilhões — expõe não apenas problemas de gestão e aparelhamento político atribuído à estatal. Traduz também a falta de visão estratégica e de agilidade da empresa para competir em um mercado de entregas em rápida e profunda transformação.

A gravidade da crise foi explicitada no balanço do período: a receita caiu 9,5% em relação ao primeiro semestre de 2024, somando R$ 8,9 bilhões. As despesas administrativas e financeiras dispararam para R$ 13,4 bilhões.

A persistir o ritmo, o déficit pode alcançar R$ 8 bilhões ao longo deste ano e obrigar o governo a fazer aportes – com dinheiro dos contribuintes – para bancar despesas básicas da estatal, como o pagamento de salários dos funcionários. A previsão é de algo em torno de R$ 20 bilhões.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem evitado confirmar o repasse de recursos, que podem comprometer ainda mais a situação fiscal, já que não há espaço no Orçamento. Mas disse na terça-feira (16) que os Correios inspiram “cuidados” e que há “muita preocupação” com a situação da estatal.

“Nós estamos acompanhando, junto com o MGI [Ministério de Gestão e Inovação] e a Casa Civil, o desenlace dessa questão que precisa ser enfrentada rapidamente”, declarou.

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Na esteira da reprecussão, o senador Ciro Nogueira (PP-PI), pediu ao Tribunal de Contas da União (TCU) uma apuração aprofundada das contas da empresa. Além de acusar o governo Lula de ignorar a situação, Nogueira articulou o requerimento aprovado pela Comissão de Transparência, que incluiu também o escrutínio de auditorias realizadas nos últimos cinco anos envolvendo os Correios e o Postalis, fundo de pensão dos funcionários. O TCU designou como relator o ministro Bruno Dantas.

Sobre o procedimento do TCU, os Correios afirmaram à Gazeta do Povo que “todas as informações sobre a situação econômico-financeira da estatal têm sido disponibilizadas de forma aberta e clara”.

Situação se agravou nos últimos quatro anos

O imbróglio envolvendo a empresa postal não é novo. Após cinco anos de resultados positivos, as contas dos Correios estão no vermelho pelo quarto ano consecutivo, em ritmo crescente. Desde o ano passado, no entanto, o risco de insolvência se intensificou. Houve ameaças de despejo de imóveis alugados, atrasos no pagamento a fornecedores e inadimplência no plano de saúde dos funcionários.

Desde então, a direção vem apresentando justificativas diversas para os rombos. Entre elas, a queda nas importações – e, consequentemente, entrega de encomendas – causada pela “taxa das blusinhas”, a necessidade de novos aportes no Postalis, fundo de pensão dos funcionários, e decisões judiciais que ampliaram despesas. Só no primeiro trimestre de 2025, segundo a empresa, o pagamento de precatórios e RPVs (Requisições de Pequeno Valor) subiu para R$ 389 milhões contra R$ 133 milhões no mesmo período de 2024.

O agravamento do quadro levou o presidente Fabiano Silva dos Santos a pedir demissão no último mês de julho. Ele vinha sofrendo desgastes desde o início da gestão. Sua indicação havia sido viabilizada pela suspensão parcial da Lei das Estatais, que abriu espaço para nomeações políticas.

Mesmo demissionário, Santos ainda permaneceu mais de dois meses no cargo à espera de um sucessor. Nos bastidores, a avaliação é de que faltavam nomes capazes de articular uma estratégia consistente para salvar a empresa, em meio à lentidão das decisões para o saneamento financeiro. Somente na terça-feira (16), o governo anunciou o substituto, o funcionário de carreira do Banco do Brasil Emmanoel Schmidt Rondon.

Segundo a estatal, Rondon dará continuidade a um amplo Programa de Recuperação e Modernização. A empresa diz ter sido afetada por um “histórico de subinvestimentos entre 2019 e 2022″, na gestão de Jair Bolsonaro (PL).

“Foram retomados investimentos em tecnologia, infraestrutura, automação e renovação da frota, além de adotadas medidas de racionalização de despesas e aumento de receitas, com diversificação de serviços e fortalecimento da atuação comercial”, afirmou a companhia à Gazeta do Povo.

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Correios perderam eficiência e competitividade

Apesar da experiência do novo mandatário no setor financeiro, especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo consideram que a missão dele é “desafiadora”. Além de esbarrar na natureza de empresa pública, sujeita a decisões mais lentas e a interesses que nem sempre são os do negócio, a estatal enfrenta o aumento da concorrência em um mercado complexo e imerso em transformações tecnológicas.

“Nos últimos anos, os Correios perderam eficiência e competitividade”, afirma Luís Claudio Martão, da Illog Logística Consultoria. Ele lembra que o monopólio da estatal se restringe apenas às cartas, enquanto o setor mais lucrativo — o e-commerce — já migrou para outras soluções. Em meio à ineficiência e falta de modernização dos Correios, empresas de e-commerce optaram por usar transportadoras ou montaram suas próprias empresas.

“O monopólio dos Correios é só em cartas, não em encomendas”, lembra. “Têm ainda algumas vantagens em cidades pequenas, mas onde está o grande volume, principalmente do e-commerce, as grandes empresas já estão fazendo. Hoje você pede num dia e entrega no mesmo dia ou no seguinte a preços mais competitivos. Os Correios não conseguem fazer isso, então vão perdendo mercado.”

Segundo relatório da Mordor Intelligence, os Correios viram sua fatia de mercado de receita despencar de 54% em 2019 para 38,51% em 2022, basicamente após a pandemia. A retração ocorreu enquanto as seis maiores transportadoras do Brasil – que incluem players como Azul Cargo Express, FedEx, Gol e Total Express – já respondiam por 71% dos embarques de encomendas em volume.

Paulo Fernandes de Oliveira, professor de MBA da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP), destaca o aumento “brutal” da concorrência a partir de então, traduzida em empresas como Mercado Livre, Shopee, Shein e Magalu, sobretudo nos grandes centros. “Mesmo sem serem proprietárias dos veículos, essas empresas controlam diretamente a gestão logística, reduzindo a dependência da estatal”, explica.

“A estratégia é deixar de usar os Correios e cada vez mais usarem parceiros. A característica normalmente é só parceiros pequenos e regionais, de forma que eles não tenham muito poder sobre o marketplace.” O caso do Mercado Livre, segundo Oliveira, é emblemático porque o site nasceu 100% dependente dos Correios. Atualmente, a estatal responde por apenas 5% de seu volume de entregas.

Tecnologia e integração de canais aumentam complexidade do setor

Outros elementos se somam à complexidade do mercado: a necessidade das empresas de oferecer sistemas de controle detalhado de prazos, rastreabilidade, entrada e saída de produtos e análise de dados.

“Hoje, uma empresa aqui em São Paulo faz entrega mais barata, muito mais rápido e com informação”, acrescenta Martão. “É o que você precisa, com rastreamento perfeito.”

Rodrigo de Castro Barros, sócio-diretor na Andersen Consulting, diz que serão necessários investimentos robustos em tecnologia. “Os grandes competidores dos Correios hoje — tanto no Brasil, como Mercado Livre e Magalu, quanto as operadoras asiáticas — têm muito investimento em gestão da operação e visibilidade”, afirma.

“E aí os Correios começam a ficar um pouco para trás. A cada ano que você investe menos, os outros avançam mais: robô em armazém, mais velocidade de entrega, uso de avião.”

Outro desafio é a crescente sofisticação das operações logísticas, impulsionada pela chamada “omnicanalidade”, ou integração de canais.

“No passado recente a gente ia lá e comprava na loja”, diz Oliveira, da FGV. “Hoje eu posso comprar na loja, a loja me entrega, posso comprar pelo WhatsApp, posso comprar no e-commerce e trocar na loja. Isso, pessoa física. Pessoa jurídica é a mesma coisa. Essa variedade de canais torna tudo mais complexo. Exige maior flexibilidade das operações, o que é muito difícil para os Correios.”

Privatização dos Correios está fora do radar do governo

Para os analistas, transformar uma estatal centenária numa empresa ágil, moderna e tecnológica já seria um trabalho “hercúleo” mesmo em tempos de estabilidade financeira. Num cenário de déficit estrondoso, considerando as limitações orçamentárias para investimentos do governo e as prioridades eleitorais, a situação é de impasse.

A possibilidade de privatização dos Correios não está no radar do atual governo.“O governo está muito conturbado para afirmar ou negar algum movimento em relação aos Correios”, diz Castro Barros. “Há muita preocupação, ainda mais agora com toda a história do tarifaço [americano], com o que vai acontecer com o Brasil nos próximos meses até o fim do ano.”

“Acho muito difícil qualquer movimento nesse sentido agora, não acho que é o perfil deste governo”, diz Oliveira, da FGV. “Agora, com uma mudança para um governo mais liberal, pode se jogar a luz sobre a privatização.”

A proposta, em qualquer cenário, enfrentará resistências. Martão, da Illog, alerta que não dá para ignorar o papel dos Correios na coesão territorial.

“A privatização teria que ser muito bem estruturada”, diz. “Tem que ter uma disposição de manter serviços essenciais, senão você rompe a integração do país. Tem grandes mercados rentáveis, mas também tem os extremos do Brasil, que são complexos. Uma boa privatização precisa prever a manutenção desses serviços.”

Castro Barros enfatiza que os Correios ainda mantêm grande diferencial competitivo pela ampla capilaridade no território nacional. “É um ativo valoroso que deve ser levado em conta na hora de privatizar”, diz. “Apesar da queda de competitividade nos grandes centros, os Correios ainda desempenham papel insubstituível em áreas mais remotas, atendendo todos os estados e todas as cidades.”

Nos grandes centros, como São Paulo, Rio de Janeiro ou Curitiba, já não existe dependência. “Muitas empresas preferem calcular sua cobertura pelo peso econômico, dizendo atender 90% ou 95% do PIB, já que quase um terço das cidades representa pouco em termos de compra, entrega e movimentação”, observa.

PPPs podem ser alternativa para investimentos

No lugar da privatização, o diretor da Andersen Consulting defende a adoção de parcerias público-privadas (PPPs) para investimentos. “Privatizar vai demorar”, diz. “Um caminho alternativo são as PPPs da rede logística dos Correios com empresas privadas que queiram utilizar a malha.”

A proposta também tem senões, já que depende de aprovações do governo e órgãos reguladores. Como o cenário político não é favorável para aprovações de investimentos e o cenário fiscal apresenta um déficit importante, os Correios não devem ser pauta prioritária no Congresso ou no Executivo até o ano que vem.

Além disso, mesmo se investimentos significativos fossem viabilizados, levaria dois a três anos para começar a gerar resultados efetivos. “Uma política voltada para a logística nacional que envolva os Correios seria bem-vinda”, afirma. “Mas hoje não vejo grande perspectiva de melhoria da situação no curto prazo.”

Para Oliveira, a única saída será se reinventar. “Sofremos uma grande chacoalhada no mercado nos últimos anos e não deu tempo de reagir”, diz.

“Os Correios continuam com ativos valiosos: as localidades, centros de distribuição, agências e a frota de caminhões, além das equipes contratadas, que ainda são pontos importantes na operação. Mas perderam o timing das mudanças e agora precisam ‘correr atrás’.”

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