Impulsionado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o número de processos na Justiça do Trabalho caminha para alcançar seu maior número desde a reforma trabalhista de 2017.
De janeiro a junho, o total de ações ajuizadas na primeira instância trabalhista chegou a 1,150 milhão, ante 1,044 milhão no mesmo período do ano passado. Mantido o ritmo de alta, a previsão é de que o total de processos chegue a 2,3 milhões até dezembro, ante 2,1 milhões nos 12 meses de 2024.
A decisão do STF, que diz respeito à gratuidade da justiça, é de 2021. E permanece diluindo os efeitos da reforma trabalhista.
A nova legislação do trabalho, aprovada no governo Michel Temer (MDB), conseguiu oxigenar as relações de trabalho. E, ao oferecer mais segurança jurídica aos empregadores, gerou 1,7 milhão de empregos nos primeiros cinco anos de vigência, segundo estudo de pesquisadores da USP e do Insper.
Entre outras coisas, a reforma havia estabelecido duas mudanças importantes sobre as despesas processuais. A primeira foi a necessidade de comprovação legal de “insuficiência de recursos” para aqueles que recebem mais de 40% do teto previdenciário terem direito à justiça gratuita. A segunda foi determinar que a parte vencida na ação deveria arcar com honorários advocatícios e custas processuais.
Com isso, as estatísticas dos processos trabalhistas em primeira instância se inverteram. O pico – de 2,7 milhões em 2016 – despencou para 1,7 milhão em 2018 e atingiu 1,4 milhão em 2020, o patamar mais baixo deste século.
Em 2021, no entanto, o STF declarou a inconstitucionalidade de um dos artigos alterados pela reforma e determinou que os beneficiários da justiça gratuita não teriam que pagar honorários ao advogado da parte contrária. Para a Corte, o pagamento dos honorários periciais por quem comprove insuficiência de recursos afronta a garantia constitucional de amplo acesso à Justiça. Desde então, o número de ações voltou a crescer com força.
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“O Supremo abriu as portas novamente para que as pessoas começassem a ingressar com ações sem correr o risco de arcar com as despesas processuais — como acontece na Justiça Cível, em que isso é muito mais rigoroso”, diz Paulo Renato Fernandes da Silva, advogado trabalhista e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). “Isso, de certo modo, estimula o aumento das ações, que costumam trazer inúmeros pedidos, com teses diversas. Com a gratuidade, muitos pedem tudo que acreditam ter direito e até o que não têm.”
Danielle Blanchet, do Rocha Pombo, Andrade, Capetti & Carneiro Advogados, alerta para o retrocesso. “O receio que alguns trabalhadores tinham pós-reforma — de entrar com ação e depois ter que pagar honorários se perdessem — praticamente desapareceu”, afirma. “Estamos voltando à situação pré-reforma.”
Processo “sem risco” na Justiça do Trabalho ficou mais fácil após decisão do STF
Outra decisão, esta do Tribunal Superior do Trabalho (TST), contribuiu para o aumento do número de processos.
Em 2024, o TST redefiniu – e afrouxou – os parâmetros de concessão da justiça gratuita. A concessão passou a ser automática para quem ganha menos que 40% do limite dos benefícios do INSS, que está em torno de R$ 9 mil. Isso significa que alguém com renda perto de R$ 4 mil já tem direito à gratuidade. E, para os que ganham acima disso, o benefício pode ser concedido com base em mera declaração de “hipossuficiência econômica”.
“Tem sido muito fácil conseguir a justiça gratuita”, diz Blanchet. “A CLT continua dizendo que é preciso comprovar que você realmente não tem recursos financeiros para bancar o processo, mas os tribunais entendem que basta apresentar a declaração. Isso é aceito mesmo quando a pessoa tem, por exemplo, um salário elevado ou já está empregada em outro lugar.”
A lei possibilita a apresentação de prova em contrário pela contraparte na ação. “Na prática, no entanto, isso não acontece”, afirma Blanchet. “Vemos isso até em processos de altos empregados ou ocupantes de cargos elevados na hierarquia das empresas.”
Dono de duas BMW e uma Harley-Davidson teve justiça paga pelo Estado
Um estudo sobre a insegurança jurídica nas leis trabalhistas, coordenado pelo sociólogo José Pastore, professor da Universidade de São Paulo (USP), mostra exemplos concretos sobre o tema.
Um dos casos apresentados pelo estudo é o de um reclamante beneficiado pela justiça gratuita que declarou possuir, entre seus bens, dois veículos BMW avaliados em R$ 800 mil cada e uma motocicleta Harley-Davidson no valor de R$ 240 mil.
Outro exemplo real é o de um empregado do sistema financeiro que, apesar de receber um salário mensal de R$ 43,6 mil, foi beneficiado com a justiça gratuita. Ao fim de sua ação trabalhista, ele recebeu R$ 960 mil, com todos os custos de sua demanda pagos pelo Estado, novamente com base em sua mera declaração de hipossuficiência.
Decisões geram prejuízo e desemprego e perdas para o Estado
Essas decisões, consideradas “injustificáveis” pelos autores do estudo, não apenas desvirtuam o propósito da justiça gratuita, mas também “instigam a apresentação de inúmeras ações frívolas, temerárias e injustificáveis, bem como sobrecarregam o sistema judiciário”.
As consequências apontadas são alarmantes. A Justiça do Trabalho atendeu a 79,8% dos pedidos de gratuidade com base em simples autodeclaração entre 2019 e 2024, resultando em uma perda de arrecadação para o Erário de cerca de R$ 5,59 bilhões em custas e R$ 300 milhões em honorários periciais no período.
Outro levantamento, realizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e do Insper, estima que a obrigatoriedade de pagar os custos de ações judiciais em caso de derrota ajudou na criação de mais de 1,7 milhão de empregos entre 2017 e 2022 e na redução da taxa de desemprego no período.
Segundo o modelo de simulação dos pesquisadores, se esses custos não tivessem sido transferidos para a parte perdedora, a taxa de desemprego seria 1,7 ponto percentual superior, e o número de novas ações trabalhistas anuais seria significativamente maior.
“Nesse contexto, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021, que isentou beneficiários da justiça gratuita do pagamento de honorários periciais e de sucumbência em caso de derrota em processos trabalhistas, tende a reduzir os efeitos positivos da reforma no emprego”, apontou o documento, publicado em maio de 2022. A previsão se mostrou certeira.
Ativismo e paternalismo marcam Justiça do Trabalho
Para Pastore, no centro do debate permanece o “ativismo judicial” e o “paternalismo” que “resultam em decisões imprevisíveis que vão além da lei”. “Como se vê, em vez de revogar a jurisprudência que foi ultrapassada por uma legislação recente, o TST reafirma a posição de tornar as súmulas mais fortes que as leis”, afirma no estudo em referência à decisão da autodeclaração.
Atualmente, permanece suspenso no STF, após um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, o julgamento de uma ação sobre a validade da autodeclaração. O resultado, porém, não altera o quadro de aumento de ações na Justiça do Trabalho, já que não muda a isenção de pagamentos para beneficiários da justiça gratuita que perdem os processos.
Para Fernandes, da FGV, o paternalismo tem levado à desconsideração da reforma trabalhista por parte de alguns tribunais inferiores. “O problema é a própria Justiça não aceitar plenamente seus parâmetros”, afirma. “Há resistência de parte do Judiciário Trabalhista em cumprir a reforma. Já se passaram quase oito anos desde 2017, e ainda vemos juízes se recusando a aplicar as normas.”
“O país consolidou um sistema que historicamente tutela o trabalhador como incapaz, ampliando tanto a legislação que praticamente matou a força do contrato individual de trabalho”, acredita o professor.
Essa mentalidade, destaca, está impregnada nas faculdades de Direito e determina também a aprovação nos concursos para a área. “Se você não pensa como eles, não passa”, diz. “Isso é um problema estrutural. Estive em Brasília recentemente e vi escrito: ‘Justiça do Trabalho – Justiça Social’. Mas justiça social é tarefa do Executivo. O Judiciário tem que julgar, não fazer justiça social com o dinheiro dos outros. Esse equívoco é conceitual.”

Também existe, segundo ele, uma cultura de litigância que se contrapõe às iniciativas modernas que priorizam alternativas de resolução de conflitos, como mediação e arbitragem.
“A lei é hostil às empresas, e a própria Justiça do Trabalho é, muitas vezes, hostil também”, afirma. “Não temos um ecossistema empresarial-jurídico de equilíbrio, mas sim um clima de desconfiança: os juízes veem o empresário como culpado e o trabalhador como alguém que precisa ser tutelado. E precisamos mudar a mentalidade: relações de trabalho não podem ser de luta de classes. Sem empresa, não há emprego.”
Questionado pela Gazeta do Povo sobre o tema, o TST não respondeu à solicitação até a publicação da matéria.